segunda-feira, 2 de março de 2009

Lênin, um democrata?



O livro Nova História Crítica, de Mário Schmidt, da editora Nova Fronteira, em seu volume único para o Ensino Médio, como todo livro, tem qualidades e defeitos. A principal qualidade é a maneira próxima e muitas vezes informal que o autor conversa com o “leitor-aluno”, procurando, sempre, fazer analogias que procuram facilitar a compreensão do estudante. Muitas vezes, reconheço, essas analogias pecam pela pobreza; mas de qualquer forma é um recurso eficiente para explicar conceitos quase sempre complexos.


Os principais defeitos do livro são seu antiamericanismo bocó, sua visão romântica do socialismo e, claro, a forma deplorável como ele se refere ao sistema capitalista e aos burgueses. Tudo isso faz o autor esquecer a objetividade e a responsabilidade no ensino da história.


Em conteúdos em que a ideologia turva o entendimento, como é o caso da Revolução Russa, o autor faz uma verdadeira ginástica intelectual para defender o socialismo, a ponto de considerar Lênin um democrata frustrado pelas contingências da vida. Sem poder defender Stálin, o autor exalta a figura do chefe dos bolcheviques durante a Revolução de Outubro, reforçando a tese furada de que o socialismo imaginado por Lênin e, em certa medida, também por Trotsky, fora completamente desvirtuado por Stálin, transformando-se numa ditadura infame e assassina. O objetivo dessa tese é clara: mostrar que o socialismo teorizado por Karl Marx e imaginado por Vladmir Lênin, ainda não aconteceu.


Antes de mostrar os equívocos dessa tese, vou reproduzir trechos do livro de Schmidt que a meu ver contradizem sua afirmação de que o líder dos bolcheviques era, na essência, um democrata, e que pelas circunstâncias tornou-se um totalitário.


“ [Lênin] não hesitou em calar a boca de todos aqueles que punham em dúvida os caminhos tomados. Os outros partidos políticos foram proibidos de funcionar. A imprensa ficou controlada pelos bolcheviques. Uma rebelião de marinheiros, influenciada pelos anarquistas, na base de Kronstadt, foi esmagada com energia.” (página 511)


Digam-me aí se essas medidas tomadas por Lênin após a Guerra Civil podem qualificá-lo como um democrata?

Mário Schmidt sugere que as medidas de Lênin se inserem num contexto único de perigo revolucionário. Em outras palavras: as prisões, os banimentos, os assassinatos, a repressão e as medidas antidemocráticas foram necessárias para “salvar a revolução”. Em 1793, os jacobinos – pelo menos esse é o raciocínio de Eric Hobsbawn - adotaram a Política do Terror com o argumento de que a Pátria estava em perigo, justificando as medidas de exceção que levaram à guilhotina 35 mil franceses.


O trecho abaixo seria cômico, se não fosse trágico.


“O dirigente bolchevique [Lênin] estava muito preocupado com o futuro da democracia na URSS. Dizia que o socialismo só poderia triunfar se fosse democrático. Tinha medo da vaidade de Trotski e da brutalidade de Stálin. Propunha dissolver a autoridade pessoal do partido em favor da autoridade coletiva.” (página 511)


Na mesma página, o autor do livro menciona que no testamento político de Lênin, o então líder máximo da União Soviética gostaria que seu sucessor fosse Trotsky. Ao que parece, entre a vaidade de Trotsky e a brutalidade de Stálin, Lênin temia mais a brutalidade.


Não existe nenhum livro escrito por Lênin em que ele defenda a democracia. Desafio alguém a mostrar. Assim como, não há nenhum livro em que Trotsky tenha, mesmo que de longe, defendido a democracia. Em verdade, num livro famoso, Moral e Revolução, o adversário de Stálin condena veementemente valores liberais e democráticos, qualificando-os de burgueses e inadequados para a moral bolchevique. Por tudo isso, soa-me estranho a afirmação de que Lênin esteve preocupado com a democracia na Rússia e que por isso pensava em propor o fim da “autoridade pessoal do partido em favor da autoridade coletiva”, seja lá o que isso signifique.


De concreto, o que se tem é que nos países onde o socialismo triunfou a democracia nunca passou pela cabeça dos dirigentes comunistas. Se é verdade que teóricos como Rosa de Luxemburgo criticavam os rumos da Revolução de 1917 na Rússia, sobretudo porque calcada na falta de liberdade, não é menos verdade de que em nenhum regime político socialista, a democracia, mesmo capenga, existiu.


Lênin pensava em acabar com a autoridade pessoal do partido, mas deixou um testamento transferindo essa autoridade para Trotsky? Não é estranho?


Na luta entre Trotsky e Stálin pelo controle do país, venceu aquele que dominava a máquina do partido e perdeu aquele que era tido pelos companheiros de revolução como um intelectual arrogante e presunçoso. A disputa entre os dois não foi por causa do futuro da revolução. Foi pelo poder.


Lênin pensava em acabar com a autoridade pessoal do Partido, mas no X Congresso do Partido, em março de 1921, acabou aprovando a resolução que discliplinava os críticos. Admtia a divergência durante os debates, mas depois da aprovação da proposta, exigia dos derrotados a obediência cega! Quem insistisse na dissidência seria "expulso" do partido. Claro que o termo "expulsão" aqui significa prisão, condenação a trabalhos forçados e fuzilamentos.


Lênin pensava em acabar com a autoridade do partido, mas no mesmo congresso aprovou a criação do Politburo, órgão formado por ele e mais 4 membros, depois ampliado para 7 e 9 membros e que na prática centralizava todas as decisões políticas do país comunista. Se com essas medidas Lênin imaginava acabar com a autoridade pessoal do partido, assusta-me imaginar se ele quisesse o contrário.


Lênin nunca foi um democrata. Nem quando enchia a cara com vodca russa. Leitor atento de Karl Marx, jamais poderia coadunar com os valores liberais em política. O socialismo seja do ponto de vista econômico, seja do político, não combina com democracia. A história o comprova.


Numa obra recente e obrigatória, A Guerra particular de Lênin, a historiadora britânica, Lesley Chamberlain, revela quão pouco democrático Lênin agiu durante e depois da Guerra Civil. De prisões, passando por confiscos e deportações, até chegar a fuzilamentos sumários de milhares de padres ortodoxos, ou mesmo dissidentes que até há pouco haviam sido companheiros na Revolução. Lênin tinha a mesma sede de sangue que o vaidoso Trotsky e o brutal Stálin. As vítimas dele, em sua esmagadora maioria, tinham cometido um único crime: ousaram discordar do líder e da maneira como a revolução estava sendo conduzida.


Leiam com atenção este trecho do livro de Lesley Chamberlain:


“Quando os bolcheviques tomaram o poder, ele ficou furioso[refere-se aqui a Kizevetter, intelectual idealista russo]atacando ‘todo esse fanatismo selvagem e destrutivo lançado sobre Moscou e a Rússia por um punhado de cidadãos russos que se entregaram a atos de inédita maldade contra seu próprio povo e tentam garantir o poder em suas próprias mãos a qualquer preço, violando, com ilimitada desfaçatez, os mesmos princípios de liberdade e irmandade que eles defendem de forma blasfema’”(página 42)


Mais adiante a historiadora continua:


“Praticamente todos os homens na futura relação de Lênin de jornalistas políticos, economistas, críticos literários, filósofos e editores devia sua vaga nos navios à sua participação na campanha antibolchevique pelos jornais. Se alguém escrevesse defendendo o outro lado, provavelmente seria deportado.”

(página 43)


O livro está repleto de exemplos de como o projeto bolchevique imaginado e implantado por Lênin no início da Revolução de Outubro e, sobretudo, durante a Guerra Civil nunca fora democrático. O socialismo, em todos os lugares onde foi implantado, mal grado a vontade de muita gente ingênua, jamais produziu riqueza e igualdade e ainda por cima solapou os valores democráticos, extinguindo as liberdades individuais, alicerces fundamentais de uma sociedade livre.


É falaciosa, portanto, a idéia de que se Lênin não tivesse morrido em 1924, ou mesmo Trotsky tivesse derrotado Stálin, o regime socialista na União Soviética teria tido outro rumo. O que se vê nas obras de Lênin e de Trotsky ou nas suas ações políticas, leva-nos a uma conclusão óbvia: leninismo, trotskismo ou stalinismo, não importa: todos desprezavam a democracia, as liberdades e a vida humana. Eram, desde as origens, doutrinas assassinas e liberticidas!

12 comentários:

Anônimo disse...

professor,encontrei algo ,que ACHO, que desafia sua afirmação(Não existe nenhum livro escrito por Lênin em que ele defenda a democracia): http://pt.wikipedia.org/wiki/O_estado_e_a_revolu%C3%A7%C3%A3o http://www.dotecome.com/blog/imagens/estadoerevolucao.jpg

Anônimo disse...

Já haiva notado a simpatia do autor do livro com as idéias Socialistas. O livro faz duras criticas ao consumo, capitalismo e principalmente aos Estados Unidos. Porém quando o assunto é Fidel Castro, Socialismo, Reforma Agrária, Esquerda, Stalin, Lula, parece-me que o autor defende essas personalidades/idéais com unhas e dentes.

Inclusive já teve até matéria da revista Veja mostrando os equívocos de alguns livros ditáticos, e o nosso livro estava lá, com uns três ou quatro comentários totalmente sem fundamento. Pena que não lembro de cor quais eram os assuntos e os equivocos do autor.

Gostaria de saber por que motivos escolheram esse livro, que na minha opinião tem uma linguagem pouco clara e didática, além de ser totalmente tendencioso por parte do autor.

Zé Costa disse...

Túlio, o livro foi um pedido meu junto à coordenação. O nosso livro, nesse assunto, não difere tanto de outros livros didáticos de história. A simpatia que intelectuais da área de humanas dispensam às idéias socialistas explicam porque a maioria dos livros didáticos DE HISTÓRIA deploram o sistema capitalista, o livre mercado e o lucro.

Acredite, tenho aqui 10 livros de história diferentes, todos para o ensino médio, e sem nenhuma exceção, todos piscam o olho para as ideias socialistas.



Lamento, com sinceridade, que você considere o texto de nosso livro de história ruim. De qualquer forma, tenho me empenhado em sala para corrigir distorções e trazer novas visões. Espero obter êxito.

Muito obrigado pela sua participação.

Zé Costa disse...

Armondes,

O livro que você sugere, foi escrito pouco antes da Revolução de Outubro. Nesta obra, Lênin critica com força os partidos de esquerda da época por fazerem uma leitura errada do marxismo. Quem tem a leitura correta? Ele, claro.

Para Lênin, a verdadeira democracia, e isso ele explicita nessa obra, só existiria quando se implantasse a ditadura do proletariado. Para isso, é óbvio, os proletários, usando a força, devem alijar a burguesia do poder e expropriá-las de seus meios de produção, para ficar na linguagem marxista.

Julgue você mesmo se um programa desse é mesmo democrático.

Um abraço.

Anônimo disse...

é verdade,talvez eu tenha me precipitado quanto as informações do livro..

Marco disse...

Caro Zé Costa,

Li seu comentário no blog de Reinaldo Azevedo, sobre o caso do bispo.

Interessante quando disse aquilo, de ser Calvinista e ser obrigado a explicar aos católicos (professores, hein?)os dogmas da Igreja. Bem colocado.

Um abraço.

Anônimo disse...

Professor, estudando história obtive algumas dúvidas que agradeceria se o senhor respondesse:
1) Havia outro intuito nos 14 Pontos de Wilson além de diminuir futuras tensões entre Europa e Alemanha, ou era só esse mesmo?
2) Porque, no Tratado de Versalhes, os países vitoriosos exigiram a desmilitarização da Romênia por parte da Alemanha? No meu caderno há uma anotação dizendo que a Romênia é fronteira entre França e Alemanha. Porém, verifiquei no mapa dá página 481, o meso postado aqui, e vi que isso não era verdadeiro. Então, qual a razão para tal ação?

Obrigada desde já.

Zé Costa disse...

Olá Cecília!

O lema “Uma Paz sem vencedores” dá uma boa dica de que o principal objetivo desses 14 Pontos era mesmo diminuir as desconfianças recíprocas que existiam entre as nações beligerantes. Leia atentamente cada um dos 14 Pontos e você perceberá a preocupação em estabelecer um equilíbrio entre as nações, procurando atender, na medida do possível, as reivindicações de cada uma das nações. Desse modo, está correto afirmar que o principal intuito dos 14 Pontos era mesmo diminuir a tensão entre as nações europeias.

Houve uma pequena confusão nesta sua segunda pergunta. A desmilitarização exigida no Tratado de Versalhes – a pedido da França – foi da região da RENANIA e não da Romênia, que fica na Europa Oriental.

A RENANIA é uma região fronteiriça entre a Alemanha e a França, por isso, o governo francês esperava com a desmilitarização da região, proteger-se de um futuro ataque germânico.

http://imageseu.homeaway.es/vd2/propmaps/VV/en/15/125238/rheinland-pfalz_125238.png

No link acima você pode conferir, num mapa, a região da RENANIA.

Até mais!

Anônimo disse...

Sim, professor, percebi, lendo os 14 pontos e o que estava no caderno, que realmente o objetivo do plano de Wilson era diminuir futuras tensões europeias. E sobre a Renania, que babaquisse a minha, acho que minha anotação foi durante a sua aula na 209 e talvez, copiando rápido o que dizia, me enganei. Desculpe, mas é bom saber por que vai que cai na prova segunda-feira né? ;)

Anônimo disse...

É extremamente agradável a leitura do nosso livro de história para mim. Não sei se é porque gosto da matéria ou porque me deslumbro sabendo de outras épocas e diferentes ideologias passadas. Entretanto, é necessária muita imparcialidade para fazer a leitura de Mário Schmidt, já que ele é um autor extremamente tendencioso.

Chega a ser engraçado o modo como ele se emabaralha todo para falar do Socialismo Científico. Para ele, sua ideologia preferida necessitava de um capitalismo forte para se firmar. Aonde já se viu, partindo do pressuposto de que o socialismo, para Lênin, Marx, Trótski ou qualquer outro sonhador, é infinitas vezes melhor que o capitalismo, deveria se firmar sozinho. É ridículo o fato de pensarem que, quanto maior o capitalismo selvagem, mais operários insatisfeitos (é importante ressaltar que antes do Domingo Sangrento Mário deixa claro que os operários eram submissos demais e conformados) e mais chances o socialismo democrático tem de surgir, quando na verdade, para mim, cada vez mais o socialismo torna-se utópico e distante.

Começo a pensar que não existe um sistema perfeito, e só o poder. Por mais que tenhamos alguma opinião fixa na cabeça, assim que conseguirmos o poder nossa formação intelectual parece ser totalmente diluída. Logo, existe apenas o poder e quem é apto para ele. Sei lá, mas pode ser. (:

Israel Batista: "Xandin" disse...

Professor, pegando um pouco do comentário do Armondes pode até ser que essas ideologias e atitudes socalistas não sejam nem um pouco democráticas, mas em sua opinião, o sistema capitalista que está instaurado em nossa sociedade nos dias atuais seria democrático???
A tese que Marx chamaria de "Mais-valia" totalmente implantada nas grandes industrias, um totalitarismo ideologico disfarçado de neo-liberalismo e uma sociedade consumista totalmente manipulada ideologicamente pelos meios de comunicação imperialistas???
Isso poderia ser chamado de democracia???

luis disse...

Nossa! minha concepção sobre Trotsky esta mudando agora...
Procurava no google trotsky x Stálin e me deparo com o seu blog professor. Otimos textos(:
Bom acho que se não fosse o livro do Mário Schimitd ter mostrado um Trotsky tão agradável, não teria achado seu blog.
Mas o livro é otimo.

Sigo fuçando o blog...