VEJA, Fevereiro de 1945 |
Tropas soviéticas libertam Auschwitz-Birkenau, maior campo de extermínio dos nazistas - Poucas centenas de prisioneiros sobrevivem, mas há sinais de massacre em larga escala - Atrocidades contra judeus abalam mundo |
Crueldade impensável: crianças judias em foto achada no arquivo de Auschwitz-Birkenau
as escrituras sagradas da religião judaica, ensina-se que nada
vale mais que a vida humana - tanto que, dos 613 mandamentos do judaísmo,
609 podem ser violados quando se trata de evitar um óbito. Ao judeu é
não só permitido como também mandatório que os fundamentos
de sua crença sejam ignorados se isso for necessário para salvar
uma vida. A explicação está no Talmude, que lembra
que todas as pessoas descendem de um só indivíduo; portanto, salvar
uma vida equivale a redimir um mundo inteiro, e ceifar propositalmente uma vida,
em qualquer circunstância e sob qualquer justificativa, é o mesmo
que dizimar a humanidade inteira.
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No curso das últimas semanas,
um mundo já atônito pela agonia de cinco anos de guerra ouviu relatos
que parecem indicar o desaparecimento da humanidade, pelo menos em sua concepção
previamente conhecida. Não se atentou contra a vida de um indivíduo;
buscou-se varrer um povo inteiro da face da terra. Os outros povos, entretanto,
não impediram a barbárie; alguns, ensandecidos pela brutalidade
impiedosa da guerra, até sancionaram a matança. Campanhas de extermínio
coletivo não são episódio inédito nas páginas
mais escuras do compêndio de crimes da raça humana. Mas como explicar
a prática de uma mortandade em escala tão monstruosa, com ódio
tão febril e, paradoxalmente, com tamanha frieza? E como sustentar que
ainda somos civilizados se, apesar dos desesperados alertas de um povo com 4.000
anos de história, uma corja de assassinos com pouco mais de uma década
de poder conseguiu materializar suas ambições mais insanas?
Os
indícios se acumulavam sobre as mesas das autoridades ocidentais havia
anos. Testemunhos inquietantes das atividades dos nazistas nos países ocupados
eram cada vez mais freqüentes. Em 27 de janeiro de 1945, contudo, encontrou-se
a prova inconteste em Oswiecim, sombrio vilarejo a cerca de 60 quilômetros
de Cracóvia, no sul da Polônia. Por volta do meio-dia, quatro jovens
soldados de um batalhão de cavalaria soviético caminharam cautelosamente
por uma estrada que conduzia a um complexo de galpões e cabanas. Por meio
do arame farpado, avistaram ao longe esqueletos vivos errando lentamente de lado
a lado. Ponteando o terreno forrado de neve, viram pilhas indistinguíveis
de coloração acinzentada. Quando chegaram mais perto, sufocaram-se
de pavor. Estavam às portas de em Auschwitz-Birkenau, o campo da morte,
o maior centro de extermínio nazista.
Apenas algumas centenas de prisioneiros ainda habitavam o amplo complexo, já abandonado pelos alemães - quando o ruído da artilharia soviética pareceu próximo demais, os nazistas bateram em retirada. Com difteria, febre escarlate e tifo, os sobreviventes foram largados à morte entre os amontoados de cadáveres putrefatos. Nos dias que precederam a chegada da tropa vermelha, conseguiram resistir de forma inexplicável ao frio e à fome. Alguns tentaram rasgar o arame e colher batatas nas cercanias do campo. Não conseguiram sequer romper os fios. Desorientados e fragilíssimos, os espectrais prisioneiros pareciam perguntar, com seus olhares vazios e distantes: aquele pesadelo impensável havia enfim terminado?
Apenas algumas centenas de prisioneiros ainda habitavam o amplo complexo, já abandonado pelos alemães - quando o ruído da artilharia soviética pareceu próximo demais, os nazistas bateram em retirada. Com difteria, febre escarlate e tifo, os sobreviventes foram largados à morte entre os amontoados de cadáveres putrefatos. Nos dias que precederam a chegada da tropa vermelha, conseguiram resistir de forma inexplicável ao frio e à fome. Alguns tentaram rasgar o arame e colher batatas nas cercanias do campo. Não conseguiram sequer romper os fios. Desorientados e fragilíssimos, os espectrais prisioneiros pareciam perguntar, com seus olhares vazios e distantes: aquele pesadelo impensável havia enfim terminado?
Máquina fria - Como se o chocante
encontro com os sobreviventes não fosse o bastante para assombrar os recrutas,
a abertura das portas dos galpões que ainda estavam de pé - só
seis dos 35 que formavam o complexo - apresentou evidências ainda mais horripilantes
das atividades praticadas ali. Um dos pavilhões escondia montanhas de artigos
diversos: ternos, vestidos, trajes infantis, sapatos, malas, óculos, dentaduras.
As etiquetas das roupas e selos das bagagens indicavam que os proprietários
vinham de todas as partes da Europa. Uma rápida estimativa feita com a
contagem das escovas de dente estocadas no galpão gelou a espinha dos soviéticos.
Eram centenas de milhares de hóspedes. Mas onde estavam todos eles?
Os
galpões que ficavam logo adiante abrigavam a indizível resposta.
Sempre orgulhosos de suas proezas técnicas e da notável eficiência
de seu maquinário, os alemães montaram em Auschwitz-Birkenau uma
verdadeira fábrica da morte, em que seres humanos eram abatidos em escala
industrial. Ao contrário dos outros massacres cometidos pelos povos bárbaros
na História, a matança não ocorria no fervor do campo de
batalha, na fúria da conquista de terras inimigas ou sob o fanatismo das
investidas religiosas. A fria máquina de extermínio nazista tinha
planejamento, organização, precisão e eficácia. Os
germânicos arianos, a "raça superior" que salvaria o mundo,
eliminavam e incineravam indivíduos indesejados como quem ateia fogo no
lixo para se eximir do trabalho de despejá-lo.
De acordo com testemunhos
dos prisioneiros resgatados, sobreviver no abatedouro polonês era a possibilidade
mais rara entre os diversos destinos de quem chegava ao campo. Logo de cara, uma
porção significativa das vítimas trazidas através
da ferrovia que corta Auschwitz era condenada à morte de forma sumária.
Nesta primeira triagem, separava-se quem era capaz de trabalhar dos que eram frágeis
demais para produzir. Para o segundo grupo, era o fim. Tropas nazistas conduziam
o contingente - na maioria mulheres, crianças e idosos - para uma ala mais
afastada. Os carrascos anunciavam: era hora de tomar banho e se livrar dos piolhos
contraídos na viagem nos vagões de carga. Não era. Espremidos
em câmaras seladas, sem roupas, no escuro, eram fatalmente sufocados por
uma nuvem letal de gás Zyklon B. Em instantes, todos mortos - sem sangue
nas mãos, sem esforço braçal, sem chance de erro, como deve
ser em toda indústria de qualidade. No passo seguinte, a faxina: gigantescos
crematórios vizinhos às câmaras engoliam os cadáveres,
cuspindo fumaça negra de forma quase ininterrupta.
Estrela amarela
- Quem passava na triagem inicial e seguia na outra fila não sabia
ao certo o que produzia aquela nuvem permanente que brotava das chaminés.
De qualquer forma, não tinha muito tempo para tentar adivinhar - escravizados,
os prisioneiros considerados saudáveis eram colocados em galpões
e campos de trabalho para intermináveis turnos de duríssimas tarefas.
Sob a ilusão da reconquista da liberdade, cumpriam suas funções
e tornavam-se engrenagens da máquina bélica alemã - no portão
principal, um letreiro de ferro prometia aos que chegavam: "Só o trabalho
liberta". A promessa, é evidente, era mais uma trapaça nazista.
Morrer na linha de produção ou na rotina de sadismo dos guardas
alemães era, para quase todos, só questão de tempo. Os relatos
de presos que escaparam são, por enquanto, extremamente escassos. Sabe-se
que, em outubro do ano passado, um grupo de presos tentou promover um levante
no campo. Mulheres que trabalhavam numa fábrica de armas próxima
conseguiram levar materiais explosivos a Auschwitz. Um crematório foi parcialmente
destruído, mas todos os 250 envolvidos na tentativa de resistência
foram executados em poucos minutos.
Conforme informações
obtidas pelo comando dos Aliados, cerca de 20.000 prisioneiros com maiores chances
de sobrevivência para a prática de trabalho forçado foram
transportados a outros campos semelhantes quando os soviéticos se aproximaram.
Acovardados, os alemães não só fugiram como também
tentaram eliminar todos os indícios do massacre, explodindo os crematórios
e incendiando os registros que detalhavam a "produtividade" dos fornos.
Deixaram para trás, no entanto, documentos e evidências que ajudam
a esclarecer o que se passava ali. Já é possível saber, por
exemplo, quais grupos "indesejados" eram eliminados: eslavos, ciganos,
deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová, dissidentes
políticos, homens homossexuais. Todos eram identificados por triângulos
coloridos costurados às roupas. O triângulo rosa identificava um
homossexual; o vermelho, um opositor político. O grupo majoritário,
porém, não era nenhum desses. Identificado por dois triângulos,
compondo uma estrela de Davi de cor amarela, ele foi sem dúvida o alvo
prioritário da fúria dos fornos nazistas: os judeus.
Odiada
e perseguida de forma implacável por Adolf Hitler desde sua ascensão
ao poder, em 1933, a comunidade judaica européia foi aniquilada. Algumas
dezenas de milhares ainda conseguiram fugir para a Palestina antes da adoção
da "solução final", no fim de 1941. Mas quem caiu nas
garras de Hitler dificilmente escapou. Pior: Auschwitz-Birkenau é apenas
uma das fábricas da morte. Sabe-se da existência de pelo menos mais
dez campos, incluindo os de Sobibór, Treblinka, Ravensbruck, Buchenwald
e Dachau - os três últimos, no próprio terriório alemão.
Por enquanto é impossível saber quantos judeus ainda vivem no continente,
mas algumas autoridades ocidentais estimam que seis entre cada dez judeus tenham
sido eliminados. E quem sobrou para contar a história guarda cenas de horror
inimaginável na lembrança.
Quando relatam as monstruosidades presenciadas nos campos da morte, os sobreviventes geralmente se recordam primeiro das crianças. Falam dos bebês arremessados vivos nos crematórios; dos moribundos corroídos pelas doenças injetadas pelo médico de Auschwitz, doutor Josef Mengele; dos concursos de arremessos de crianças judias entre os guardas da SS. Também falam das mulheres; as mais jovens, estupradas repetidamente antes de mortas, seus corpos usados como tochas humanas em fogueiras de mortos - a carne delas, constataram os guardas, queima mais rápido. Quando pergunta-se sobre as pilhas de corpos, as testemunhas lembram de ratazanas mordiscando os cadáveres; de prisioneiros ainda vivos lutando para se expelir de uma montanha de mortos; de mulheres grávidas abortando fetos. E do cheiro, dizem todos.
Quando relatam as monstruosidades presenciadas nos campos da morte, os sobreviventes geralmente se recordam primeiro das crianças. Falam dos bebês arremessados vivos nos crematórios; dos moribundos corroídos pelas doenças injetadas pelo médico de Auschwitz, doutor Josef Mengele; dos concursos de arremessos de crianças judias entre os guardas da SS. Também falam das mulheres; as mais jovens, estupradas repetidamente antes de mortas, seus corpos usados como tochas humanas em fogueiras de mortos - a carne delas, constataram os guardas, queima mais rápido. Quando pergunta-se sobre as pilhas de corpos, as testemunhas lembram de ratazanas mordiscando os cadáveres; de prisioneiros ainda vivos lutando para se expelir de uma montanha de mortos; de mulheres grávidas abortando fetos. E do cheiro, dizem todos.
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Nas escrituras sagradas da religião
judaica, ensina-se que, consumada a morte, nada é mais importante do que
respeitar o corpo sem vida. O cadáver jamais deve ser deixado sozinho -
um shomerim, ou "guardião", permanece ao seu lado. Na preparação
para o sepultamento, o corpo é cuidadosamente lavado e envolto num sudário
modesto; o féretro jamais fica aberto, para que ninguém presencie
a ausência de vida. O luto é profundo e prolongado. Ao judeu, porém,
a morte é um processo natural - como a vida, é parte do plano de
Deus para cada um. Morto, o judeu inicia uma nova vida, tem um novo mundo à
sua frente. E todos os que viveram uma existência digna são recompensados.
Retirado de Veja na História.
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