 
 
 | Tropas soviéticas libertam Auschwitz-Birkenau, maior campo de extermínio 
dos nazistas - Poucas centenas de prisioneiros sobrevivem, mas há sinais de massacre 
em larga escala - Atrocidades contra judeus abalam mundo | 
 Crueldade impensável: crianças judias em foto achada 
no arquivo de Auschwitz-Birkenau
 Crueldade impensável: crianças judias em foto achada 
no arquivo de Auschwitz-Birkenau 
as escrituras sagradas da religião judaica, ensina-se que nada 
vale mais que a vida humana - tanto que, dos 613 mandamentos do judaísmo, 
609 podem ser violados quando se trata de evitar um óbito. Ao judeu é 
não só permitido como também mandatório que os fundamentos 
de sua crença sejam ignorados se isso for necessário para salvar 
uma vida. A explicação está no Talmude, que lembra 
que todas as pessoas descendem de um só indivíduo; portanto, salvar 
uma vida equivale a redimir um mundo inteiro, e ceifar propositalmente uma vida, 
em qualquer circunstância e sob qualquer justificativa, é o mesmo 
que dizimar a humanidade inteira.
No curso das últimas semanas, 
um mundo já atônito pela agonia de cinco anos de guerra ouviu relatos 
que parecem indicar o desaparecimento da humanidade, pelo menos em sua concepção 
previamente conhecida. Não se atentou contra a vida de um indivíduo; 
buscou-se varrer um povo inteiro da face da terra. Os outros povos, entretanto, 
não impediram a barbárie; alguns, ensandecidos pela brutalidade 
impiedosa da guerra, até sancionaram a matança. Campanhas de extermínio 
coletivo não são episódio inédito nas páginas 
mais escuras do compêndio de crimes da raça humana. Mas como explicar 
a prática de uma mortandade em escala tão monstruosa, com ódio 
tão febril e, paradoxalmente, com tamanha frieza? E como sustentar que 
ainda somos civilizados se, apesar dos desesperados alertas de um povo com 4.000 
anos de história, uma corja de assassinos com pouco mais de uma década 
de poder conseguiu materializar suas ambições mais insanas?
Os 
indícios se acumulavam sobre as mesas das autoridades ocidentais havia 
anos. Testemunhos inquietantes das atividades dos nazistas nos países ocupados 
eram cada vez mais freqüentes. Em 27 de janeiro de 1945, contudo, encontrou-se 
a prova inconteste em Oswiecim, sombrio vilarejo a cerca de 60 quilômetros 
de Cracóvia, no sul da Polônia. Por volta do meio-dia, quatro jovens 
soldados de um batalhão de cavalaria soviético caminharam cautelosamente 
por uma estrada que conduzia a um complexo de galpões e cabanas. Por meio 
do arame farpado, avistaram ao longe esqueletos vivos errando lentamente de lado 
a lado. Ponteando o terreno forrado de neve, viram pilhas indistinguíveis 
de coloração acinzentada. Quando chegaram mais perto, sufocaram-se 
de pavor. Estavam às portas de em Auschwitz-Birkenau, o campo da morte, 
o maior centro de extermínio nazista.
Apenas algumas centenas de 
prisioneiros ainda habitavam o amplo complexo, já abandonado pelos alemães 
- quando o ruído da artilharia soviética pareceu próximo 
demais, os nazistas bateram em retirada. Com difteria, febre escarlate e tifo, 
os sobreviventes foram largados à morte entre os amontoados de cadáveres 
putrefatos. Nos dias que precederam a chegada da tropa vermelha, conseguiram resistir 
de forma inexplicável ao frio e à fome. Alguns tentaram rasgar o 
arame e colher batatas nas cercanias do campo. Não conseguiram sequer romper 
os fios. Desorientados e fragilíssimos, os espectrais prisioneiros pareciam 
perguntar, com seus olhares vazios e distantes: aquele pesadelo impensável 
havia enfim terminado?
Máquina fria - Como se o chocante 
encontro com os sobreviventes não fosse o bastante para assombrar os recrutas, 
a abertura das portas dos galpões que ainda estavam de pé - só 
seis dos 35 que formavam o complexo - apresentou evidências ainda mais horripilantes 
das atividades praticadas ali. Um dos pavilhões escondia montanhas de artigos 
diversos: ternos, vestidos, trajes infantis, sapatos, malas, óculos, dentaduras. 
As etiquetas das roupas e selos das bagagens indicavam que os proprietários 
vinham de todas as partes da Europa. Uma rápida estimativa feita com a 
contagem das escovas de dente estocadas no galpão gelou a espinha dos soviéticos. 
Eram centenas de milhares de hóspedes. Mas onde estavam todos eles?
Os 
galpões que ficavam logo adiante abrigavam a indizível resposta. 
Sempre orgulhosos de suas proezas técnicas e da notável eficiência 
de seu maquinário, os alemães montaram em Auschwitz-Birkenau uma 
verdadeira fábrica da morte, em que seres humanos eram abatidos em escala 
industrial. Ao contrário dos outros massacres cometidos pelos povos bárbaros 
na História, a matança não ocorria no fervor do campo de 
batalha, na fúria da conquista de terras inimigas ou sob o fanatismo das 
investidas religiosas. A fria máquina de extermínio nazista tinha 
planejamento, organização, precisão e eficácia. Os 
germânicos arianos, a "raça superior" que salvaria o mundo, 
eliminavam e incineravam indivíduos indesejados como quem ateia fogo no 
lixo para se eximir do trabalho de despejá-lo.
De acordo com testemunhos 
dos prisioneiros resgatados, sobreviver no abatedouro polonês era a possibilidade 
mais rara entre os diversos destinos de quem chegava ao campo. Logo de cara, uma 
porção significativa das vítimas trazidas através 
da ferrovia que corta Auschwitz era condenada à morte de forma sumária. 
Nesta primeira triagem, separava-se quem era capaz de trabalhar dos que eram frágeis 
demais para produzir. Para o segundo grupo, era o fim. Tropas nazistas conduziam 
o contingente - na maioria mulheres, crianças e idosos - para uma ala mais 
afastada. Os carrascos anunciavam: era hora de tomar banho e se livrar dos piolhos 
contraídos na viagem nos vagões de carga. Não era. Espremidos 
em câmaras seladas, sem roupas, no escuro, eram fatalmente sufocados por 
uma nuvem letal de gás Zyklon B. Em instantes, todos mortos - sem sangue 
nas mãos, sem esforço braçal, sem chance de erro, como deve 
ser em toda indústria de qualidade. No passo seguinte, a faxina: gigantescos 
crematórios vizinhos às câmaras engoliam os cadáveres, 
cuspindo fumaça negra de forma quase ininterrupta.
Estrela amarela 
- Quem passava na triagem inicial e seguia na outra fila não sabia 
ao certo o que produzia aquela nuvem permanente que brotava das chaminés. 
De qualquer forma, não tinha muito tempo para tentar adivinhar - escravizados, 
os prisioneiros considerados saudáveis eram colocados em galpões 
e campos de trabalho para intermináveis turnos de duríssimas tarefas. 
Sob a ilusão da reconquista da liberdade, cumpriam suas funções 
e tornavam-se engrenagens da máquina bélica alemã - no portão 
principal, um letreiro de ferro prometia aos que chegavam: "Só o trabalho 
liberta". A promessa, é evidente, era mais uma trapaça nazista. 
Morrer na linha de produção ou na rotina de sadismo dos guardas 
alemães era, para quase todos, só questão de tempo. Os relatos 
de presos que escaparam são, por enquanto, extremamente escassos. Sabe-se 
que, em outubro do ano passado, um grupo de presos tentou promover um levante 
no campo. Mulheres que trabalhavam numa fábrica de armas próxima 
conseguiram levar materiais explosivos a Auschwitz. Um crematório foi parcialmente 
destruído, mas todos os 250 envolvidos na tentativa de resistência 
foram executados em poucos minutos.
Conforme informações 
obtidas pelo comando dos Aliados, cerca de 20.000 prisioneiros com maiores chances 
de sobrevivência para a prática de trabalho forçado foram 
transportados a outros campos semelhantes quando os soviéticos se aproximaram. 
Acovardados, os alemães não só fugiram como também 
tentaram eliminar todos os indícios do massacre, explodindo os crematórios 
e incendiando os registros que detalhavam a "produtividade" dos fornos. 
Deixaram para trás, no entanto, documentos e evidências que ajudam 
a esclarecer o que se passava ali. Já é possível saber, por 
exemplo, quais grupos "indesejados" eram eliminados: eslavos, ciganos, 
deficientes físicos e mentais, testemunhas de Jeová, dissidentes 
políticos, homens homossexuais. Todos eram identificados por triângulos 
coloridos costurados às roupas. O triângulo rosa identificava um 
homossexual; o vermelho, um opositor político. O grupo majoritário, 
porém, não era nenhum desses. Identificado por dois triângulos, 
compondo uma estrela de Davi de cor amarela, ele foi sem dúvida o alvo 
prioritário da fúria dos fornos nazistas: os judeus.
Odiada 
e perseguida de forma implacável por Adolf Hitler desde sua ascensão 
ao poder, em 1933, a comunidade judaica européia foi aniquilada. Algumas 
dezenas de milhares ainda conseguiram fugir para a Palestina antes da adoção 
da "solução final", no fim de 1941. Mas quem caiu nas 
garras de Hitler dificilmente escapou. Pior: Auschwitz-Birkenau é apenas 
uma das fábricas da morte. Sabe-se da existência de pelo menos mais 
dez campos, incluindo os de Sobibór, Treblinka, Ravensbruck, Buchenwald 
e Dachau - os três últimos, no próprio terriório alemão. 
Por enquanto é impossível saber quantos judeus ainda vivem no continente, 
mas algumas autoridades ocidentais estimam que seis entre cada dez judeus tenham 
sido eliminados. E quem sobrou para contar a história guarda cenas de horror 
inimaginável na lembrança.
Quando relatam as monstruosidades 
presenciadas nos campos da morte, os sobreviventes geralmente se recordam primeiro 
das crianças. Falam dos bebês arremessados vivos nos crematórios; 
dos moribundos corroídos pelas doenças injetadas pelo médico 
de Auschwitz, doutor Josef Mengele; dos concursos de arremessos de crianças 
judias entre os guardas da SS. Também falam das mulheres; as mais jovens, 
estupradas repetidamente antes de mortas, seus corpos usados como tochas humanas 
em fogueiras de mortos - a carne delas, constataram os guardas, queima mais rápido. 
Quando pergunta-se sobre as pilhas de corpos, as testemunhas lembram de ratazanas 
mordiscando os cadáveres; de prisioneiros ainda vivos lutando para se expelir 
de uma montanha de mortos; de mulheres grávidas abortando fetos. E do cheiro, 
dizem todos.
Nas escrituras sagradas da religião 
judaica, ensina-se que, consumada a morte, nada é mais importante do que 
respeitar o corpo sem vida. O cadáver jamais deve ser deixado sozinho - 
um shomerim, ou "guardião", permanece ao seu lado. Na preparação 
para o sepultamento, o corpo é cuidadosamente lavado e envolto num sudário 
modesto; o féretro jamais fica aberto, para que ninguém presencie 
a ausência de vida. O luto é profundo e prolongado. Ao judeu, porém, 
a morte é um processo natural - como a vida, é parte do plano de 
Deus para cada um. Morto, o judeu inicia uma nova vida, tem um novo mundo à 
sua frente. E todos os que viveram uma existência digna são recompensados.