terça-feira, 3 de março de 2015

A Guerra de Canudos.





A origem da Guerra de Canudos é obscura, e Os sertões bem que se esforça por elucidá-la. Sabe-se que Antônio Conselheiro peregrinou durante trinta anos pelos sertões do Nordeste, cumprindo voto de penitência que consistia em construir ou reconstruir igrejas, cemitérios e açudes, enquanto fazia pregações e proferia sermões (os conselhos). Essa mistura de fé com boas obras provocou alguns conflitos com a polícia e a Igreja, pois Antônio Conselheiro, que era católico e beato, mas não tinha sido ordenado sacerdote, obtinha ou não a tolerância dos vigários locais, conforme o caso. Sabe-se também que justamente por não ser padre, ele pregava somente no adro das igrejas e não no altar, e que se abstinha de administrar os sacramentos, como o casamento, o batismo, etc. Peregrinava acompanhado por um séquito, que o acolitava nas obras e nas orações, rezando junto com ele.
Ora, o advento da república acarreta alterações que perturbam o ânimo dos peregrinos. De um lado, são decretados novos impostos, que gravam a população pobre do sertão. De outro, certas medidas laicas, mas afetando princípios religiosos (...) tradicionais, são postas em ação. É o caso da separação entre Igreja e Estado, a liberdade de culto e a instituição do casamento civil pela Assembleia Constituinte de 1890. Especialmente esta, que contradizia frontalmente um sacramento católico.
Após algumas escaramuças com as autoridades das vilas e arraiais do interior, os peregrinos passaram a evitar as aglomerações urbanas e a afundar-se cada vez mais no deserto, para voltar-se à vida contemplativa. Acabam por arranchar, por volta do ano de 1893, na tapera de uma fazenda abandonada no fundo do sertão da Bahia, longe de tudo. As ruínas eram de uma antiga propriedade fundiária ora abandonada e que pertencera à Casa da Torre, um vasto domínio de criação de gado estabelecido pelo bandeirante Garcia d'Ávila nos primórdios da colônia. Sobre as ruínas, os peregrinos instalam seu acampamento, edificam pouco a pouco seus barracos de pau-a-pique - futura Tróia de taipa, no oxímoro euclidiano -, reconstroem  a pulso, e pedra por pedra, um antigo templo local e começam a erguer outro, muito maior, defronte àquele. Ambos nos largo central do povoado, serão batizados como Igreja Velha e Igreja Nova. Estava instalado o arraial de Canudos, nome pelo qual já era conhecida a antiga fazenda.
É da construção da Igreja Nova que decorre um primeiro incidente, a multiplicação deles se avolumando até deflagrar uma verdadeira guerra.
Não há madeira no sertão, cuja cobertura vegetal típica é a caatinga, [que] não passa de um mato ralo, de garranchos, gravetos e cactos. Por isso, o povo de Canudos tinha comprado e pago antecipadamente na cidade de Juazeiro um lote de peças necessárias para as obras da Igreja Nova. Não tendo sido entregue à encomenda, apesar de paga, ameaçaram ir buscá-la pessoalmente.
O que fizeram, organizados numa procissão precedida pela bandeira do divino Espírito Santo, cantando hinos religiosos. Mas as autoridades locais tinham convocado, para recebê-los, tropas estaduais, comandadas pelo tenente Pires Ferreira. Emboscadas estas em Uauá, seguiu-se um combate sangrento, em que os canudenses foram dizimados. Ainda assim, sem saber avaliar a quantidade em números e os recursos de que o adversário dispunha, as tropas bateram em retirada. Esse episódio passou à história como a primeira expedição contra Canudos, ou expedição Pires Ferreira (1896)
Enceta-se então a preparação de uma nova ofensiva, sempre com tropas estaduais baianas, agora mais numerosas e mais bem armadas, bom como sob o comando de uma patente mais alta, o major Febrônio de Brito. Em janeiro de 1897 deslancha o ataque, que resulta igualmente em derrota, nos arredores de Canudos. Essa foi a segunda expedição contra Canudos, ou Expedição Febrônio de Brito.

A terceira expedição ganha uma patente superior, tendo por comandante um coronel, e que coronel: Moreira César tivera sua reputação firmada durante a campanha contra a Revolução Federalista no sul do país, quando se destacara pelo rigor da repressão que exercia, ganhando então o cognome de "Corta-cabeças" ou "Corta-pescoço". O perigo que Canudos veio a representar, após essas duas derrotas, já é agora considerado de alçada nacional e grave demais para ficar sob a responsabilidade de tropas estaduais. Monta-se uma grande ofensiva, com forças federais vindas de todo o país, armamento moderno incluindo canhões, e uma ampla campanha no sentido de alertar a opinião pública. Os ânimos estão exaltados, a demagogia patriótica espicaçada, e começa-se a insinuar que os incidentes do sertão apontam para uma tentativa de restauração monárquica.

Acompanhada pela atenção de todo o país, a terceira expedição se reúne em Salvador e marcha para Canudos. Chega a atacar o arraial, mas após algumas horas, sofrendo pesadas perdas, inclusive a de seu comandante, bate em retirada, debandando, enquanto, para facilitar a fuga, joga fora armas e munições - que serão coletadas e entesouradas pelos canudenses - e até peças de farda, como dólmans ou botas.
A celeuma provocada por mais essa derrota é incalculável. Manifestações de rua nas duas principais cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, acabaram se transformando em motins em que o furor da multidão se desencadeou sobre os alvos mais óbvios, ou seja, os poucos jornais monarquistas sobreviventes: quatro foram empastelados e o dono de um deles foi linchado. Todos clamavam pelo aniquilamento dessa ameaça nacional contra a República.
A quarta expedição põe-se em marcha em junho de 1897 (com Euclides, nomeado adido do ministro da Guerra, seguindo depois com uma das colunas em agosto) e vai assediar o arraial, o qual é cercado para impedir socorro ou reforços. Mas, sobretudo, para tolher o abastecimento de água, tão preciosa na caatinga seca e penosamente obtida em cacimbas no leito seco do rio Vaza-Barris.
Entrementes, os canudenses, que antes só dispunham de poucas e arcaicas peças de fogo, daquelas de carregar pela boca - arcabuzes, bacamartes e colubrinas - agora dispõem do mais moderno armamento da época, abandonado pela terceira expedição em debandada.
À medida que o assédio constringe o arraial, do qual alguns setores vão sendo ocupados, a resistência inquebrantável dos canudenses começa a desafiar a compreensão e a constituir-se em enigma. Alguns dias antes do final, parlamenta-se uma rendição, negociada por Antônio Beatinho, membro da Guarda pessoal de Antônio Conselheiro. Para consternação dos atacantes, entregam-se cerca de trezentas mulheres, reduzidas pela fome à condição de esqueletos, acompanhadas pelas crianças e por alguns velhos; e a resistência recrudesce, mais forte agora porque desvencilhada de um peso morto. Finalmente, após um bombardeio intenso de vários dias e da utilização pioneira de uma espécie de napalm primitivo - a gasolina espalhada sobre as casas ainda habitadas é incendiada por bastões de dinamites sobre elas lançados  

O arraial se calou, sem se render, a 5 de outubro de 1897. Os últimos resistentes, calcinados numa cova no largo das igrejas, não eram mais que quatro, dois quais dois eram homens, um velho e um menino.
(...) O cadáver de Antônio Conselheiro, que morrera dias antes do final, foi exumado. Sua cabeça cortada e levada para a Faculdade de Medicina da Bahia para ser autopsiada, com a intenção de descobrir-se a origem de seus descaminhos...


Fonte: Introdução ao Brasil, vol. 1; org. Lourenço Dantas da Silva; Walnice Nogueira Galvão, Os Sertões de Euclides da Cunha, p. 161-166.

Um comentário:

Alessandro Marcondes disse...


A falta de diálogo e compreensão com esses sertanejos, brasileiros que foram massacrados, uma verdadeira mancha de nossa história. Viva Canudos.