NOITE NUCLEAR
“Por que já é noite? Por que nossa casa caiu? O que
aconteceu?”. A Sra. Nakamura não tinha respostas para as insistentes perguntas
de Myeko, sua filha de cinco anos. Naquela hora da manhã de 06 de agosto de
1945, os sobreviventes de Hiroxima não sabiam o que os atingira e apenas começavam
a vislumbrar a extensão do desastre. Nakamura acabara de retirar seus filhos
pequenos dos escombros e retornara ao interior da casa destruída para encontrar
agasalhos. A manhã de verão deveria ser quente, mas fazia um frio inexplicável
e a cidade estava coberta por uma névoa úmida e escura. Ninguém ouvira o ruído
característico das esquadrilhas de bombardeiros B-29, mas tudo era um monte de
ruínas, até onde a vista alcançava. Nas horas seguintes, em meio ao caos, os
sobreviventes descobririam que eram as testemunhas da inauguração da era
nuclear.
O que aconteceu em Hiroxima na manhã inaugural logo
se tornou objeto de acesas discussões políticas e éticas. Contudo, durante
quase um ano, s voz das vítimas permaneceu inaudível. Em maio de 1946, a
revista The New Yorker enviou o jornalista John Hersey ao Japão ocupado com a
missão de entrevistar sobreviventes e oferecer-lhes a palavra. Ele colheu
material durante um mês. A edição da revista de 31 de agosto foi inteiramente
dedicada à longa reportagem com a narrativa das experiências de seis pessoas
que estavam na cidade na hora da explosão. Hersey escreveu um texto comedido,
econômico, sóbrio. Não usou nenhum artifício ou enfeite: o relato das horas e
dias seguintes das vítimas não precisava de mais nada. Hiroxima significa a
destruição total. O fim de uma cidade, de um mundo e de uma época.
OS SIGNIFICADOS DE HIROXIMA
Hiroxima ardia, consumida pelo fogo e contaminada
pela radiação, quando aviões americanos lançaram sobre as cidades japonesas um
curto panfleto aterrador. Sua principal passagem dizia:
Possuímos o
explosivo mais destruidor já idealizado pela humanidade. Uma única de nossas
recém-desenvolvidas bombas atômicas é, na verdade, o equivalente em poder
explosivo ao que podem transportar dois mil de nossos gigantescos B-29 numa só
missão. Esse fato terrível deve ser ponderado por vocês, e nós asseguraremos,
solenemente, que ele é cruelmente preciso. Começamos a usar tal arma contra a
sua terra natal. Se vocês ainda têm alguma dúvida, investiguem o que aconteceu
a Hiroxima quando apenas uma bomba atômica caiu sobre a cidade.
.
“Litle Boy” caiu sobre Hiroxima a 6 de agosto de
1945. “Fat Man” caiu sobre Nagasaki três dias depois. No instante das
detonações, o clarão da explosão emitiu uma radiação de calor que se deslocou à
velocidade da luz. As pessoas que se encontravam em lugares abertos foram
extensivamente queimadas: a pele carbonizou-se em tons marrom-escuro ou preto e
elas pereceram depois de minutos ou horas. A radiação térmica se deslocou em linha
reta, como a luz, de modo que as áreas queimadas corresponderam à exposição
direta a ela. Indivíduos que estavam no interior de edifícios e casas
experimentaram queimaduras nas partes expostas através das janelas. Um homem
que escrevia diante de uma janela teve as mãos completamente carbonizadas, mas,
devido ao ângulo de entrada da radiação, seu pescoço e sua face sofreram apenas
queimaduras superficiais.
Sob os cogumelos atômicos, morreram no dia dos
bombardeios algo em torno de 150 mil pessoas. Quatro meses depois, como efeito
da radiação e das queimaduras, o saldo de mortes havia dobrado. O panfleto
lançado sobre as cidades japonesas incentivava a população a pedir ao imperador
que encerrasse a guerra: “Nosso presidente delineou para vocês as 13 consequências
de uma rendição honrosa.” Os representantes do Japão assinaram, a 2 de
setembro, a bordo do USS Missouri, o Instrumento de Rendição. “Nós, por este,
proclamamos a rendição incondicional aos Poderes Aliados do Quartel-General
Imperial japonês e de todas as forças armadas japonesas e das forças armadas
sob controle japonês, onde quer que estejam situadas.”
Um símbolo da rendição incondicional: eis o
primeiro significado de Hiroxima.
Os Estados Unidos conduziram o bombardeio estratégico
do Japão durante três anos. Nos meses derradeiros, o uso de bombas incendiárias
produziu destruições calamitosas. Nas quase setenta cidades atingidas, o total
de mortos provavelmente ultrapassou as cifras combinadas de Hiroxima e
Nagasaki. A campanha aérea contra Tóquio, em março de 1945, parece ter
convencido o imperador Hirohito a buscar negociações de paz. Mas a resistência
psicológica do Japão só foi quebrada em definitivo com o emprego da bomba
atômica.
A diferença de quantidade, na escala verificada nas
duas cidades japonesas, teve o condão de mudar todo o cenário das relações
internacionais. Hiroxima marca o momento em que as grandes potências (isto é,
as potências nucleares) se separam radicalmente das demais pela posse de uma
capacidade de dissuasão quase absoluta. Na história militar anterior, nenhuma
potência era realmente invulnerável e a guerra se apresentava como alternativa
viável para a solução de divergências cruciais: a continuação da política por
outros meios, na célebre definição de Carl von Clausewitz. O poder nuclear
modificou os parâmetros do cálculo estratégico. A agressão contra detentores da
nova arma se tornou uma hipótese aterradora. O confronto militar direto entre
potências nucleares se converteu em algo próximo de uma impossibilidade. A guerra
(nuclear) despontou como o espectro da abolição da pólis – e, portanto, da
política.
Fonte: O Mundo
em Desordem. MAGNOLI, D. & BARBOSA, E. S. Páginas: 421, 425,427.
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