Demétrio Magnoli, O Globo - 15/08 2013.
“Muitos dos jovens que estão usando essa estratégia
da violência nas manifestações vieram das periferias brasileiras. Eles já são
vítimas da violência cotidiana por parte do Estado e por isso os protestos
violentos passam a fazer sentido para eles”.
Rafael Alcadipani Silveira, autor do diagnóstico
que equivale a uma celebração do vandalismo, não é um músico punk, mas um
docente da FGV-SP. O seu (preconceituoso) raciocínio associa “violência” a
“periferia” — como se esse sujeito abstrato (a “periferia”) fosse portador de
uma substância inescapável (a “violência”).
Por meio do conhecido expediente de atribuir a um
sujeito abstrato (a “periferia”) as ideias, as vontades e os impulsos dele
mesmo, Silveira oculta os sujeitos concretos que produzem um “sentido” para
“protestos violentos”. Tais sujeitos nada têm a ver com a “periferia”: são
acadêmicos-ativistas engajados na reativação de um projeto político que
arruinou as vidas de uma geração de jovens na Alemanha e na Itália.
No DNA humano estão inscritas as “pegadas” da
evolução dos seres vivos. Nas obras de arte, encontram-se os sinais de uma
extensa cadeia de influências que as interligam à história da arte.
Similarmente, pode-se identificar nos textos políticos uma genealogia
doutrinária, que se manifesta em modelos argumentativos típicos e expressões
estereotipadas.
O professor da FGV menciona a “violência cotidiana
por parte do Estado”. Nas páginas eletrônicas dos Black Blocs, pipoca a
expressão “Estado policial”. Bruno Torturra, o Mídia Ninja ligado a Marina
Silva, definiu os Black Blocs como “uma estética” e defendeu a “ação direta”,
desde que “dirigida aos bancos”.
Pablo Ortellado, filósofo e ativista, elogiou a
“ação simbólica” de destruição de uma agência bancária que, interpretada “na
interface da política com a arte”, simularia a ruína do capitalismo. Eu já li
essas coisas — e sei onde.
Tudo isso foi escrito na década de 1970, pelos
intelectuais italianos que lideraram os grupos autonomistas Potere Operaio,
Lotta Continua e Autonomia Operaia. Eles mencionavam as qualidades exemplares
da “ação direta” e a eficiência da “violência simbólica”.
Toni Negri pregava a violência como ferramenta para
defender os “espaços” criados pelas “ações de massa” e exaltava o “efeito
terrível que qualquer comportamento subversivo, mesmo se isolado, causa sobre o
sistema”.
Avançando um largo passo, Franco Piperno clamava
pela “combinação” da “potência geométrica da Via Fani” (referência ao sequestro
de Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, em Roma, no 16 de março de 1978) “com a
maravilhosa beleza do 12 de março” (alusão ao assassinato de um policial, em
Turim, pelo grupo extremista Prima Linea, em 1977).
Depois do assassinato de Moro, Negri e Piperno
foram processados e injustamente condenados a cumprir sentenças de prisão, que
acabaram sendo revertidas. Intelectuais, de modo geral, não sujam as próprias
mãos. Os líderes autonomistas não integravam as Brigadas Vermelhas ou a Prima
Linea — e, portanto, não deram as ordens que resultaram em atos de terror
Eles apenas ensinaram a seus jovens seguidores,
alguns dos quais viriam a militar nas organizações terroristas, que a violência
é necessária, eficaz e bela. A responsabilidade deles não era criminal, mas
política e moral, algo que jamais tiveram a decência de reconhecer.
Onde fica a fronteira entre a violência “simbólica”
e a violência “real”? Na noite de 2 de abril de 1968 bombas incendiárias
caseiras explodiram em duas lojas de departamentos de Frankfurt, que já estavam
fechadas. A ação pioneira do grupo Baader-Meinhof, inscrita “na interface da
política com a arte”, foi cuidadosamente planejada para não matar ninguém. Era
a violência “só contra coisas”, não “contra pessoas”, na frase de Ortellado
para justificar as ações dos Black Blocs.
O primeiro cadáver do Baader-Meinhof, um guarda
penitenciário, surgiu na operação de resgate de Andreas Baader, em maio de
1970. Depois, vieram outros cadáveres, de chefes de polícia, juízes, promotores
ou empresários. Tais personalidade seriam “símbolos” do “sistema” — isto é,
segundo uma interpretação possível, “coisas”, não “pessoas”.
A tragédia alemã precedeu a tragédia italiana, mas
não a evitou. No “Outono Alemão” de 1977, um jovem radical desiludido escreveu
uma carta amarga, irônica, indagando sobre os critérios para decidir quem tinha
mais responsabilidade pela opressão capitalista — e, portanto, deveria ser
selecionado como alvo. “Por que essa política de personalidades? Não poderíamos
sequestrar junto uma cozinheira? Não deveríamos pôr um foco maior nas
cozinheiras?”
Os nossos alegres teóricos dos Black Blocs aplaudem
o incêndio “simbólico” de uma agência bancária, mas ainda não se pronunciaram
sobre o valor artístico da vandalização de edifícios empresariais,
shopping-centers, delegacias, palácios de governo ou residências. Por que esse
“foco” nos bancos?
Eugênio Bucci — ele também! — usou a palavrinha
“estética” quando escreveu sobre a suposta novidade do “esporte radical e
teatral de jogar coquetel molotov contra os escudos da tropa fardada”. Não
existe, porém, novidade.
Ortellado publicou um artigo sobre as fontes da
“tática” dos Black Blocs, evidenciando suas conexões com os movimentos
autonomistas de “ação direta” na Alemanha e Itália dos anos 1970 e 1980, cujos
destacamentos de choque servem de modelo aos nossos encapuzados.
Ele não diz com clareza, mas as teses políticas que
reativam o culto da manifestação violenta originam-se precisamente de alguns
dos acadêmicos-ativistas daquele tempo, hoje repaginados como mestres grisalhos
do movimento antiglobalização.
Os Black Blocs anunciam um “badernaço nacional”
para o 7 de setembro. Mas o “badernaço” intelectual começou antes, na forma
dessas piscadelas cúmplices para idiotas vestidos de preto que rebobinam um
desastroso filme antigo.
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