Demétrio Magnoli
Meio século atrás, à
sombra do Memorial de Lincoln, em Washington, Martin Luther King
pronunciou 1.667 palavras. Nenhuma delas era “África” — ou “africanos”,
ou mesmo “afro-americanos”. Nessa ausência encontra-se a prova da
atualidade do discurso mais célebre do século XX. Deveríamos ouvi-lo
novamente, prestando atenção no contraste entre aquela linguagem e a
utilizada hoje pelos arautos das políticas de raça.
King aludiu à
Proclamação de Emancipação, de Abraham Lincoln, “um grande farol de
esperança para milhões de negros escravos”, mencionou as “algemas da
segregação” e as “correntes da discriminação” que, cem anos depois,
ainda aleijavam “a vida dos negros”, e falou sobre a “solitária ilha de
pobreza, em meio a um vasto oceano de prosperidade material” na qual
viviam os negros.
No discurso de agosto de 1963, os negros eram
definidos por referências situacionais (escravidão, segregação,
pobreza), não por uma essência identitária (raça, etnia, cultura ou
origem).
Americanos, não “afro-americanos” — isso são os negros,
na linguagem de King. Os negros, que experimentam “o exílio em sua
própria terra”, marcharam à “capital de nossa nação” para cobrar uma
promessa de igualdade escrita “pelos arquitetos de nossa república” na
Declaração de Independência e na Constituição.
A luta para
resgatar aquela “nota promissória” ergueria “nossa nação das areias
movediças da injustiça racial para a sólida rocha da fraternidade”. Ela
não deveria “conduzir-nos a desconfiar de todas as pessoas brancas”,
pois “muitos de nossos irmãos brancos (...) compreenderam que o destino
deles está preso ao nosso” e que “a liberdade deles está
inextricavelmente ligada à nossa”.
A linguagem de King não
desafiava apenas as leis de segregação, seu alvo imediato, mas uma
narrativa sobre a origem dos Estados Unidos, seu alvo distante. Tal
narrativa, uma versão da ideia do melting pot, coagulara-se no
fim do século XIX como reação à libertação dos escravos e como chave
lógica para a segregação racial oficial. Ela descrevia os Estados Unidos
como uma nação de colonos brancos rodeada por minorias raciais
(indígenas, asiáticos e negros africanos).
No discurso que
completa 50 anos, King contestava todo esse cortejo de noções
identitárias emanadas do pensamento racial. Não, dizia, a nação é outra
coisa — é aquilo que está escrito nos textos fundadores!
A
contestação de King separava-o de uma longa tradição da política negra
nos Estados Unidos. W. E. B. Du Bois entalhara o mito da raça na fachada
da venerável NAACP, principal organização negra americana. Ele não
acreditava no valor explicativo de “grosseiras diferenças físicas de
cor, cabelos e ossos”, mas invocava “forças sutis” que “dividiram os
seres humanos em raças claramente definidas aos olhos do historiador e
do sociólogo”.
“Nós”, dizia Du Bois, “somos americanos por
nascimento e cidadania” e “em virtude de nossos ideais políticos, nossa
linguagem, nossa religião”. Contudo, acrescentava, “nosso americanismo
não vai além disso” pois, “a partir desse ponto, somos negros, membros
de uma raça histórica que se encontra adormecida desde a aurora da
criação, mas começa a acordar nas florestas escuras de sua pátria
africana”.
Afro-americanos: o termo, cunhado muito depois, na
bigorna do multiculturalismo, foi concebido no início do século XX como
um fruto do pensamento racial. A atualidade do discurso de King
encontra-se precisamente na sua ruptura com a visão de Du Bois, que era
um reflexo da narrativa racista sobre a nação branca.
Du Bois,
revisitado pelo multiculturalismo, não o universalismo de King, é a
fonte das políticas oficiais de raça no Brasil. Um documento de
“orientações curriculares” para a “educação étnico-racial” da Secretaria
Municipal de Educação de São Paulo, datado de 2008, sintetiza as
diretrizes que, a partir do MEC, disseminam entre os jovens estudantes a
noção de divisão da humanidade em raças. O texto deplora a vasta
diversidade de cores utilizada pelos indivíduos em declarações
censitárias, que contribuiria “para diminuir o potencial político da
população afro-brasileira”.
“A pluralidade de cores no país diz
quem é o povo brasileiro, mas não sua identidade étnico-racial”, segundo
os sábios da Secretaria Municipal de Educação. A solução para a
carência identitária residiria numa especial reinterpretação das
palavras dos declarantes. Operando como “um agente social de
reconhecimento eficaz do outro”, transformando-se “em alguém mais ativo
no processo de identificação”, o recenseador produziria em tabelas e
gráficos a “população afro-brasileira” que não emerge das
autodeclarações.
Em termos diretos, trata-se de manufaturar uma
fraude censitária com a finalidade de gerar as tais “raças claramente
definidas aos olhos do historiador e do sociólogo” de que falava Du
Bois. Destinado a professores, o texto veiculava a mensagem inequívoca
de que, na sala de aula, a linguagem da raça é um imperativo absoluto,
em nome do qual deve-se ignorar a informação censitária factual.
“Eu
tenho o sonho de que meus quatro pequenos filhos viverão, um dia, numa
nação onde não serão julgados pela cor da sua pele, mas pelo teor de seu
caráter”. A sentença nuclear do discurso de King não solicitava do
reconhecimento de identidades étnicas ou de direitos raciais. Ela exigia
que os Estados Unidos aplicassem o princípio, contido nos seus
documentos fundadores, segundo o qual “todos os seres humanos são
criados iguais”.
A igualdade entre indivíduos livres de todas as
cores, não um acordo político entre coletividades raciais distintas, era
a reivindicação do 28 de agosto de 1963. Eis por que aquele dia
permanece tão atual, lá e aqui.
Eu também tenho um sonho. Sonho
com o dia em que milhões de exemplares do discurso de King sejam
distribuídos, clandestinamente, como material subversivo nas escolas
brasileiras.
Demétrio Magnoli é sociólogo.