Área de atuação do bando de Lampião. |
A SEDUÇÃO DOS BANDIDOS. DE
LAMPIÃO A LEONARDO PAREJA, O QUE AFINAL NOS ATRAI NESSES FORAS DA LEI?
Um
homem armado invade uma casa em busca de comida. A dona, humilde viúva da zona
rural, não tem o que oferecer. Tomado por um ataque de fúria, o invasor dá uma
surra na mulher e depois se volta para o jovem filho da viúva, que presencia
tudo. Põe então em prática seu gosto por rituais de sadismo gratuito: enfia o
órgão genital do menino numa gaveta e a tranca com chave. Depois, ateia fogo à
casa. Desesperado, o rapaz é obrigado a cortar o próprio pênis para salvar a
vida.
O
facínora responsável por esse crime hediondo é hoje um mito nacional: Virgulino
Ferreira, vulgo Lampião. Sua ficha criminal não caberia em todas as páginas
desta edição. Durantes 22 anos, liderou um bando de cangaceiros em ataques
sangrentos num vasto perímetro de sete estados do Nordeste. Arrasavam vilas e
propriedades rurais. Estupravam mulheres. Castravam rapazes. Enterravam gente
viva. Cortavam cabeças. Sangravam inocentes como animais em praça pública.
Marcavam com ferro em brasa o rosto de moças que se vestiam de modo
“inadequado”.
Os
poderosos da época anunciavam publicamente sua indignação com os atentados em
série e suplicavam verbas do governo federal para caçar os cangaceiros. Mas,
nos bastidores, faziam acordos com os chefes da gangue, vendiam-lhe armas e
contratavam seus valiosos serviços de jagunço para se livrarem de desafetos e
se apossarem de terras abandonadas. O terror promovido pelo cangaço contribuiu
para a migração em massa do Nordeste para o Sudeste nas primeiras décadas do
século XX. Os cordéis da época lamentavam o sofrimento do sertanejo nas mãos dos
bandidos
É um tormento horroroso
essa tal situação,
da gente não poder mais
viajar pelo sertão
para encontrar pelo caminho
indo cair direitinho
nas unhas de Lampião.
Como
explicar que, hoje, esse bandido quase só receba loas, como símbolo de
cabra-macho, vingador do sertão? Como explicar Lampião, o Mito?
É
o que se perguntava desde criança a antropóloga Luitgarde Cavalcanti. Sua mãe
caíra nas garras do cangaceiro quando jovem. No município de Santana de Ipanema
(AL), Lampião trancou as moças da família em uma casa e ordenou que ninguém de
seu bando encostasse nelas. Não foi um súbito acesso de bondade. Luitgarde
atribui a decisão ao racismo do “rei do cangaço”. Descendentes de holandeses,
com pele clara, olhos azuis, bem vestidas, aquelas mulheres impressionaram
Lampião pelo fino trato e pela boa aparência. Eram, enfim, de uma “raça
refinada”.
Por
mais de 20 anos, Luitgarde se dedicou a investigar o cangaço, o que resultou no
livro A derradeira gesta: Lampião e Nazarenos guerreando no sertão (2000). Para
ela, a mitificação de Lampião é um absurdo histórico a ser corrigido. “Ele só
conseguiu permanecer 22 anos praticando os seus crimes porque servia à classe
dominante”. O êxodo provocado por Lampião refez o latifúndio no sertão
nordestino. Enquanto foi vivo, ele não era mitificado pelo povo. “Até o início
de 1960, nenhum cordel dizia que Lampião teria ido para o céu; ele sempre
aparecia no inferno”, diz ela. Tanto que o coronel Lucena Maranhão, o homem que
matou o pai do cangaceiro e mais tarde liderou a caçada que resultou na morte
do próprio Lampião (1938), entrou para a história como benfeitor público.
Então,
quando, e por obra de quem, surgiu o Lampião fictício, guerreiro de Brasil
miserável? A pesquisadora aponta origens distintas para essa deturpação. Em
primeiro lugar estão os que participaram ou que se beneficiaram do cangaço. Os
irmãos Melchiades e Ezequias da Rocha, por exemplo, descendiam dos “coiteiros”
de Lampião – gente que ajudava os cangaceiros a se esconder e os apoiava com
serviços variados. Aos Rocha soava bem melhor ter ancestrais ligados a um
“justiceiro” do que serem conhecidos como protetores de bandidos. Eis porque, a
partir dos anos 1940, o jornalista Melchiades, repórter de A Noite, passou a
defender um novo olhar sobre o cangaço, enquanto o senador e médico Ezequias
compunha cordéis sob o pseudônimo de Zabelê. Trazem sua assinatura os primeiros
versos conhecidos em que Lampião tem seus atos legitimados pela corrupção reinante,
como estes:
Para havê paz no Sertão,
E as moça pudê prosá
E os rapaz pudê se ri
E os menino diverti
É preciso inleição
Pra fazê de Lampião
Gunvenadô do Brasil.
A
versão de que Lampião simbolizava um certo ideal de justiça social atendia a
vários interesses, até mesmo para os potentados regionais da política e da
Justiça. No outro extremo dos embates políticos, o novo Lampião caía como uma
luva para a propaganda comunista no Brasil, como exemplo de “herói camponês” –
a Internacional Comunista chegou a pensar em recrutá-lo como guerrilheiro. Nos
anos de 1960, quando sobreveio a ditadura e a esquerda se aferrou a símbolos de
libertação popular, não havia mais dúvida sobre quem teriam sido os vilões e os
heróis nos combates entre cangaceiros e a polícia corrupta dos coronéis.
Some-se a tudo isso a liberdade poética dos cordelistas e cantadores, tendo à
mão o apelo dramático de personagens altamente simbólicos e já distantes no
tempo. Receita pronta e infalível para o nascimento do bom bandido.
Aliás,
fora de seu contexto, o bordão “Bandido bom é bandido morto”, popularizado pelo
ex-deputado fluminense Sivuca, tem a precisão de uma máxima sociológica. Pois é
justamente o que afirma o historiador best-seller britânico Eric Hobsbawm em
Bandidos, obra de referência para os estudos sobre o conceito de “banditismo
social”: “Sem dúvida, é mais fácil converter bandidos mortos, ou até mesmo
remotos, em Robin Hoods, qualquer que tenha sido seu comportamento real”. Se
bandido bom é bandido morto, melhor ainda é bandido inexistente. Como comprova
o mesmo Hobsbawm ao apontar a lenda de Robin Hood como ideal universal do bom
ladrão. Sem os pecados e as contradições dos criminosos de carne e osso, ele se
beneficiou da imaterialidade para perenizar-se no imaginário do honrosa e
eterna odisseia humana em sua luta contra autoridades ilegítimas ou injustas.
Em
Bandidos, lançado no Brasil em 1975, Hobsbawm faz uma viagem panorâmica por
diversos exemplos de “bandidos sociais” ao redor do mundo, procurando embasar
esse novo conceito em critérios socioculturais aproximativos. O livro virou
referência, para o bem ou para o mal: criticado por muitos, mas
obrigatoriamente citado desde então. O contexto de atuação dos bandidos sociais
de Hobsbawm se relaciona com a era moderna – a partir da formação dos estados
nacionais e do controle dos territórios por poderes centrais – e se dá sempre
na área rural. A maior causa das críticas à obra é sua análise genérica de que
esse tipo de banditismo teria um significado pré-político, demarcando um início
de reação das populações excluídas contra a opressão dos poderes locais. Para
Hobsbawm, Lampião entra no rol dos “bandidos sociais”, embora com a ressalva de
que ra um personagem ambíguo, meio “nobre”, meio “monstro”.
Ainda
que percam precisão quando generalizados, alguns modelos de Hobsbawn são úteis
para uma verificação da presença, ou não, do bandido social em casos
específicos de crimes. Um deles é o fator vingança. Em diversos tempos e
culturas, a vingança é encarada como motivo aceitável para se pegar em armas a
fim de fazer justiça com as próprias mãos. Foi o que levou outro cangaceiro
notório, Antônio Silvino (1875-1944), a conquistar sua vaga no Paraíso dos
cordéis: ele começou sua vida bandida para vingar o pai assassinado. O mesmo
argumento por vezes é usado para defender Lampião. Mais uma vez a caçadora do
mito Luitgarde Cavalcanti se insurge contra a tese: “Isso é outra mentira.
Lampião entrou ara o cangaço com o pai muito vivo, em 1916. O pai dele só
morreu cinco anos depois”. Quando muito, teria caído na marginalidade por conta
de violentas rixas familiares anteriores. Em seu livro, Luitgarde chama de
“escudo ético” o pretexto da vingança paterna utilizada por Lampião para
justificar suas ações. Antônio Silvino, em oposição, ganha crédito da
pesquisadora por ter mantido um “resto de honra”, obedecendo a certos limites –
não estuprava e não castrava, por exemplo.
Fonte:
Revista de História da Biblioteca Nacional. Ano 6, n° 68, maio de 2011. P 17 a
21.
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