A origem
da Guerra de Canudos é obscura, e Os sertões bem que se esforça por
elucidá-la. Sabe-se que Antônio Conselheiro peregrinou durante trinta anos
pelos sertões do Nordeste, cumprindo voto de penitência que consistia em
construir ou reconstruir igrejas, cemitérios e açudes, enquanto fazia pregações
e proferia sermões (os conselhos). Essa mistura de fé com boas obras
provocou alguns conflitos com a polícia e a Igreja, pois Antônio Conselheiro,
que era católico e beato, mas não tinha sido ordenado sacerdote,
obtinha ou não a tolerância dos vigários locais, conforme o caso. Sabe-se
também que justamente por não ser padre, ele pregava somente no adro das
igrejas e não no altar, e que se abstinha de administrar os sacramentos, como o
casamento, o batismo, etc. Peregrinava acompanhado por um séquito, que o
acolitava nas obras e nas orações, rezando junto com ele.
Ora, o
advento da república acarreta alterações que perturbam o ânimo dos peregrinos.
De um lado, são decretados novos impostos, que gravam a população pobre do
sertão. De outro, certas medidas laicas, mas afetando princípios religiosos
vincadamente tradicionais, são postas em ação. É o caso da separação entre
Igreja e Estado, a liberdade de culto e a instituição do casamento civil pela
Assembleia Constituinte de 1890. Especialmente esta, que contradizia
frontalmente um sacramento católico.
Após
algumas escaramuças com as autoridades das vilas e arraiais do interior, os
peregrinos passaram a evitar as aglomerações urbanas e a afundar-se cada vez
mais no deserto, para votar-se à vida contemplativa. Acabam por arranchar, por
volta do ano de 1893, na tapera de uma fazenda abandonada no fundo do sertão da
Bahia, longe de tudo. As ruínas eram de uma antiga propriedade fundiária ora
abandonada e que pertencera à Casa da Torre, um vasto domínio de criação de
gado estabelecido pelo bandeirante Garcia d'Ávila nos primórdios da colônia.
Sobre as ruínas, os peregrinos instalam seu acampamento, edificam pouco a pouco
seus barracos de pau-a-pique - futura Tróia de taipa, no oximoro euclidiano -,
reconstroem a pulso, e pedra por pedra, um antigo templo local e começam
a erguer um outro muito maior, defronte àquele. Ambos nos largo central do
povoado, serão batizados como Igreja Velha e Igreja Nova. Estava instalado o
arraial de Canudos, nome pelo qual já era conhecida a antiga fazenda.
É da
construção da Igreja Nova que decorre um primeiro incidente, a multiplicação
deles se avolumando até deflagrar uma verdadeira guerra.
Não há
madeira no sertão, cuja cobertura vegetal típica é a caatinga a qual, como
vimos, não passa de um mato ralo, de garranchos, gravetos e cactos. Por isso, o
povo de Canudos tinha comprado e pago antecipadamente na cidade de Juazeiro um
lote de peças necessárias para as obras da Igreja Nova. Não tendo sido entregue
a encomenda, apesar de paga, ameaçaram ir buscá-la pessoalmente.
O que
fizeram, organizados numa procissão precedida pela bandeira do divino Espírito
Santo, cantando hinos religiosos. Mas as autoridades locais tinham convocado,
para recebê-los, tropas estaduais, comandadas pelo tenente Pires Ferreira.
Emboscadas estas em Uauá, seguiu-se um combate sangrento, em que os canudenses
foram dizimados. Ainda assim, sem saber avaliar a quantidade em números e os
recursos de que o adversário dispunha, as tropas bateram em retirada. Esse
episódio passou à história como a primeira expedição contra Canudos, ou
expedição Pires Ferreira (1896)
Enceta-se
então a preparação de uma nova ofensiva, sempre com tropas estaduais baianas,
agora mais numerosas e mais bem armadas, bem como sob o comando de uma patente
mais alta, o major Febrônio de Brito. Em janeiro de 1897 deslancha o ataque,
que resulta igualmente em derrota, nos arredores de Canudos. Essa foi a segunda
expedição contra Canudos, ou Expedição Febrônio de Brito.
A terceira expedição ganha uma patente superior,
tendo por comandante um coronel, e que coronel: Moreira César tivera sua
reputação firmada durante a campanha contra a Revolução Federalista no sul do
país, quando se destacara pelo rigor da repressão que exercia, ganhando então o
cognome de "Corta-cabeças" ou "Corta-pescoço". O perigo que
Canudos veio a representar, após essas duas derrotas, já é agora considerado de
alçada nacional e grave demais para ficar sob a responsabilidade de tropas
estaduais. Monta-se uma grande ofensiva, com forças federais vindas de todo o
país, armamento moderno incluindo canhões, e uma ampla campanha no sentido de
alertar a oponião pública. Os ânimos estão exaltados, a demagogia patriótica
espicaçada, e começa-se a insinuar que os incidentes do sertão apontam para uma
tentativa de restauração monárquica.
Acompanhada
pela atenção de todo o país, a terceira expedição se reúne em Salvador e marcha
para Canudos. Chega a atacar o arraial, mas após algumas horas, sofrendo pesadas
perdas, inclusive a de seu comandante, bate em retirada debandando, enquanto
para facilitar a fuga joga fora armas e munições - que serão coletadas e
entesouradas pelos canudenses - e até peças de farda, como dólmans ou botas.
A celeuma
provocada por mais essa derrota é incalculável. Manifestações de rua nas duas
principais cidades do país, Rio de Janeiro e São Paulo, acabaram se
transformando em motins em que o furor da multidão se desencadeou sobre os
alvos mais óbvios, ou seja, os poucos jornais monarquistas sobreviventes:
quatro foram empastelados e o dono de um deles foi linchado. “Todos clamavam
pelo aniquilamento dessa ameaça nacional contra a república.”
A quarta expedição põe-se em marcha em junho de
1897 (com Euclides, nomeado adido do ministro da Guerra, seguindo depois com
uma das colunas em agosto) e vai assediar o arraial, o qual é cercado para impedir
socorro ou reforços. Mas sobretudo para tolher o abastecimento de água, tão
preciosa na caatinga seca e penosamente obtida em cacimbas no leito seco do rio
Vaza-Barris.
Entrementes,
os canudenses, que antes só dispunham de poucas e arcaicas peças de fogo,
daquelas de carregar pela boca - arcabuzes, bacamartes e colubrinas - agora
dispõem do mais moderno armamento da época, abandonado pela terceira expedição
em debandada.
À medida
que o assédio constringe o arraial, do qual alguns setores vão sendo ocupados,
a resistência inquebrantável dos canudenses começa a desafiar a compreensão e a
constituir-se em enigma. Alguns dias antes do final, parlamenta-se uma
rendição, negociada por Antônio Beatinho, membro da Guarda pessoal de Antônio
Conselheiro. Para consternação dos atacantes, entregam-se cerca de trezentas
mulheres, reduzidas pela fome à condição de esqueletos, acompanhadas pelas
crianças e por alguns velhos; e a resistência recrudesce, mais forte agora
porque desvencilhada de um peso morto. Finalmente, após um bombardeio intenso
de vários dias e da utilização pioneira de uma espécie de napalm primitivo - a
gasolina espalhada sobre as casas ainda habitadas é incendiada por bastões de
dinamites sobre elas lançado - o arraial se calou, sem se render, a 5 de
outubro de 1897. Os últimos resistentes, calcinados numa cova no largo das
igrejas, não eram mais que quatro, dois quais dois eram homens, um velho e um
menino.
(...) O
cadáver de Antônio Conselheiro, que morrera dias antes do final, foi exumado. Sua
cabeça cortada e levada para a Faculdade de Medicina da Bahia para ser
autopsiada, com a intenção de descobrir-se a origem de seus
descaminhos..."
Fonte:
Introdução ao Brasil, vol 1, org Lourenço Dantas da Silva; Walnice
Nogueira Galvão, Os sertões de Euclides da Cunha, p. 161 – 167.
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