O livro Nova História Crítica, de Mário Schmidt, da editora Nova Fronteira, em seu volume único para o Ensino Médio, como todo livro, tem qualidades e defeitos. A principal qualidade é a maneira próxima e muitas vezes informal que o autor conversa com o “leitor-aluno”, procurando, sempre, fazer analogias que facilitem a compreensão do estudante. Muitas vezes, reconheço, essas analogias pecam pela pobreza, mas de qualquer forma é um recurso eficiente para explicar conceitos quase sempre complexos.
Os principais defeitos do livro são seu antiamericanismo bocó, sua visão romântica do socialismo e, claro, a forma deplorável como ele se refere ao sistema capitalista e aos burgueses. Tudo isso faz o autor esquecer a objetividade e a responsabilidade no ensino da história. Em conteúdos em que ideologia turva o entendimento, como é o caso da Revolução Russa, o autor faz uma verdadeira ginástica intelectual para defender o socialismo, a ponto de considerar Lênin um democrata frustrado pelas contingências da vida. Sem poder defender Stálin, o autor exalta a figura do chefe dos bolcheviques durante a Revolução de Outubro, reforçando a tese furada de que o socialismo imaginado por Lênin e, em certa medida, também por Trotsky, fora completamente desvirtuado por Stálin, transformando-se numa ditadura infame e assassina. O objetivo dessa tese é clara: mostrar que o socialismo teorizado por Karl Marx e imaginado por Vladmir Lênin, ainda não aconteceu.
Antes de mostrar os equívocos dessa tese, vou reproduzir trechos do livro de Schmidt que a meu ver contradizem sua afirmação de que o líder dos bolcheviques era na essência um democrata que pelas circunstâncias tornou-se um totalitário.
“ [Lênin] não hesitou em calar a boca de todos aqueles que punham em dúvida os caminhos tomados. Os outros partidos políticos foram proibidos de funcionar. A imprensa ficou controlada pelos bolcheviques. Uma rebelião de marinheiros, influenciada pelos anarquistas, na base de Kronstadt, foi esmagada com energia.” (página 511)
Digam-me aí se essas medidas tomadas por Lênin após a Guerra Civil podem qualificá-lo como um democrata?
Mário Schmidt sugere que as medidas de Lênin se inserem num contexto único de perigo revolucionário. Em outras palavras: as prisões, os banimentos, os assassinatos, a repressão e as medidas antidemocráticas foram necessárias para “salvar a revolução”. Em 1793, os jacobinos – pelo menos esse é o raciocínio de Eric Hobsbawn - adotaram a Política do Terror com o argumento de que a Pátria estava em perigo, justificando as medidas de exceção que levaram à guilhotina 35 mil franceses.
O trecho abaixo seria cômico, se não fosse trágico.
“O dirigente bolchevique [Lênin] estava muito preocupado com o futuro da democracia na URSS. Dizia que o socialismo só poderia triunfar se fosse democrático. Tinha medo da vaidade de Trotski e da brutalidade de Stálin. Propunha dissolver a autoridade pessoal do partido em favor da autoridade coletiva.” (página 511)
Na mesma página, o autor do livro menciona que no testamento político de Lênin, o então líder máximo da União Soviética gostaria que seu sucessor fosse Trotsky. Ao que parece, entre a vaidade de Trotsky e a brutalidade de Stálin, Lênin temia mais a brutalidade.
Não existe nenhum livro escrito por Lênin em que ele defenda a democracia. Desafio alguém a mostrar. Assim como, não há nenhum livro em que Trotsky tenha, mesmo que de longe, defendido a democracia. Em verdade, num livro famoso, Moral e Revolução, o adversário de Stálin condena veementemente valores liberais e democráticos, qualificando-os de burgueses e inadequados para a moral bolchevique. Por itudo isso, soa-me estranho a afirmação de que Lênin esteve preocupado com a democracia na Rússia e que por isso pensava em propor o fim da “autoridade pessoal do partido em favor da autoridade coletiva”, seja lá o que isso signifique.
De concreto, o que se tem é que nos países onde o socialismo triunfou a democracia nunca passou pela cabeça dos dirigentes comunistas. Se é verdade que teóricos como Rosa de Luxemburgo criticavam os rumos da Revolução de 1917 na Rússia, sobretudo porque calcada na falta de liberdade, não é menos verdade de que em nenhum regime político socialista, a democracia, mesmo capenga, existiu.
Lênin pensava em acabar com a autoridade pessoal do partido, mas deixou um testamento transferindo essa autoridade para Trotsky? Não é estranho? Na luta entre Trotsky e Stálin pelo controle do país, venceu aquele que dominava a máquina do partido e perdeu aquele que era tido pelos companheiros de revolução como um intelectual arrogante e presunçoso. A disputa entre os dois não foi por causa do futuro da revolução. Foi pelo poder.
Lênin pensava em acabar com a autoridade pessoal do Partido, mas no X Congresso do Pertido, em março de 1921, acabou aprovando a resolução que discliplinava os críticos de dentro do partido. Admtia a divergência durante os debates, mas depois da aprovação da proposta, exigia dos derrotados a obediência cega! Quem insistisse na dissidência seria "expulso" do partido. Claro que o termo "expulsão" aqui significa prisão, condenação a trabalhos forçados e fuzilamentos.
Lênin pensava em acabar com a autoridade do partido, mas no mesmo congresso aprovou a criação do Politburo, órgão formado por ele e mais 4 membros, depois ampliado para 7 e 9 membros e que na prática centralizavam todas as decisões políticas do país comunista. Se com essas medidas Lênin imaginava em acabar com a autoridade pessoal do partido, assusta-me imaginar se ele quisesse o contrário.
Lênin nunca foi um democrata. Nem quando enchia a cara com vodca russa. Leitor atento de Karl Marx, jamais poderia coadunar com os valores liberais em política. O socialismo seja do ponto de vista econômico, seja do político, não combina com democracia. A história o comprova.
Numa obra recente e obrigatória, A Guerra particular de Lênin, a historiadora britânica, Lesley Chamberlain, revela quão pouco democrático Lênin agiu durante e depois da Guerra Civil. De prisões, passando por confiscos e deportações, até chegar a fuzilamentos sumários de milhares de padres ortodoxos, ou mesmo dissidentes que até há pouco haviam sido companheiros na Revolução, Lênin tinha a mesma sede de sangue que o vaidoso Trotsky e o brutal Stálin. As vítimas de Lênin, em sua esmagadora maioria, tinham cometido um único crime: ousaram discordar do líder e da maneira como a revolução estava sendo conduzida. Leiam com atenção este trecho do livro de Lesley Chamberlain:
“Quando os bolcheviques tomaram o poder, ele ficou furioso[refere-se aqui a Kizevetter, intelectual idealista russo]atacando ‘todo esse fanatismo selvagem e destrutivo lançado sobre Moscou e a Rússia por um punhado de cidadãos russos que se entregaram a atos de inédita maldade contra seu próprio povo e tentam garantir o poder em suas próprias mãos a qualquer preço, violando, com ilimitada desfaçatez, os mesmos princípios de liberdade e irmandade que eles defendem de forma blasfema’”(página 42)
Mais adiante a historiadora continua:
“Praticamente todos os homens na futura relação de Lênin de jornalistas políticos, economistas, críticos literários, filósofos e editores devia sua vaga nos navios à sua participação na campanha antibolchevique pelos jornais. Se alguém escrevesse defendendo o outro lado, provavelmente seria deportado.”
(página 43)
O livro está repleto de exemplos de como o projeto bolchevique imaginado e implantado por Lênin no início da Revolução de Outubro e, sobretudo, durante a Guerra Civil nunca fora democrático. O socialismo, em todos os lugares onde foi implantado, mal grado a vontade de muita gente ingênua, jamais produziu riqueza e igualdade e ainda por cima solapou os valores democráticos, extinguindo as liberdades individuais, alicerces fundamentais de uma sociedade livre.
É falaciosa, portanto, a idéia de que se Lênin não tivesse morrido em 1924 ou mesmo Trotsky tivesse derrotado Stálin, o regime socialista na União Soviética teria tido outro rumo. O que se vê nas obras de Lênin e de Trotski ou nas suas ações políticas, leva-nos a uma conclusão óbvia: leninismo, trotskismo ou stalinismo, não importa: todos desprezavam a democracia, as liberdades e a vida humana. Eram, desde as origens, doutrinas assassinas e liberticidas!
* Texto publicado originalmente em 02 de março de 2009.
2 comentários:
O livro usa linguagem praticamente infantil.
O aluno deveria ir à escola para aprender a ler e entender algo elaborado, mas o intuito do autor é se aproximar do jovem leitor, e não aproximar o aluno da linguagem mais aperfeiçoada.
Não deveria existir "aproximar os livros dos alunos" com uma linguagem mais simples, mas aproximar os alunos dos livros, ensinando-os uma linguagem mais aperfeiçoada.
Critica-se uma linguagem mais rebuscada com adjetivos negativos em muitos livros didáticos, mas não é bem assim. Quanto melhor o vocabulário, com mais sutileza e precisão você será capaz de expor um pensamento, querer sempre escrever de maneira simples até mascara um objetivo desonesto. Com o tempo, o aluno passa a ter um pensamento mais limitado porque se acostumou dessa forma, sempre passando seu pensamento numa escrita mais simples, e deteriorando seu poder de expressão e persuasão.
É claro que vemos também manifestações fúteis da escrita rebuscada, usada descriteriosamente(ou mesmo com objetivos desonestos) em muitos livros novos. A forma de escrever mais complexa serve apenas á ser o mais clara, completa, concisa e precisa.
"Mudar o valor e o peso das palavras é determinar, de antemão, o curso dos pensamentos baseados nelas e, portanto, das ações que daí decorram. Quem quer que consinta em adaptar seu discurso às exigências do “politicamente correto”, seja sob o pretexto que for, cede a uma das chantagens morais mais perversas de todos os tempos e se torna cúmplice do jogo de poder que a inspirou. "
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