Os
alemães sabiam - e aplaudiam - atrocidades do nazismo
No livro 'Apoiando Hitler',
historiador reúne provas do apoio do povo ao regime
Cecília
Araújo
Corpos em campo de concentração
nazista na Alemanha (Corbis)
Contrariando
estudiosos que dizem que as atrocidades do nazismo eram desconhecidas por
grande parte da população alemã, a escritora Christa Wolf declarou certa vez
que para saber sobre a Gestapo, os campos de concentração e as campanhas de
discriminação e perseguição bastava ler os jornais. Para comprovar essa
hipótese, o renomado professor de história da Universidade Estadual da Flórida
Robert Gellately reúne provas de que a sociedade tinha acesso a essas
informações em seu mais novo livro, Apoiando Hitler: Consentimento e coerção
na Alemanha nazista, lançado em julho no Brasil (Ed. Record, tradução de
Vitor Paolozzi, 518 páginas, 67,90 reais). De acordo com o autor, Hitler não só
divulgou abertamente as ações do governo, que assumira em agosto de 1934, como
também conquistou amplo apoio popular para colocá-los em prática. "Ele não
queria subjugar os alemães, mas conquistá-los. Para isso, polia os ideais
germânicos, construía imagens populares positivas na imprensa e manipulava
fobias milenares", pontua Gellately.
Frustrados
com o experimento democrático da República de Weimar (1918 a 1933) - instaurada
na Alemanha logo após a I Guerra Mundial, herdando todo o peso da derrota do
país na disputa, resultando em caos econômico, social e político -, os alemães
se mostraram orgulhosos ao enxergar Hitler como um líder que conseguiu lhes
devolver a sensação de segurança e normalidade, além de combater o desemprego e
a inflação. Ao avaliar um vasto material sobre a polícia secreta e os campos de
concentração publicados na imprensa naquele período, Gellately comprova que o
povo alemão formou a base sólida do regime nazista. As autoridades não só
publicavam histórias de "crime e castigo", como elaboravam uma teoria
prisional e policial coerente, racional e científica. Explorando os arquivos da
Gestapo, Gellately foi além de qualquer outro historiador. "As provas
materiais foram destruídas por toda parte, exceto em três cidades - e foi ali
que foquei minhas pesquisas", conta o autor, que revela nesta entrevista
ao site de VEJA suas descobertas, consideradas pioneiras.
Gellately
é professor de história na Universidade Estadual da Flórida
Como o
senhor chegou à polêmica conclusão de que grande parte dos alemães tinha uma
imagem clara das atrocidades nazistas?
Entre 1933 e 1939, a maioria dos cidadãos sabia
sobre os campos de concentração e a Gestapo (polícia secreta do regime
nazista), simplesmente porque se podia ler abertamente sobre o assunto na
imprensa. Conhecendo o mito "nós não sabemos de nada", fiquei chocado
com a quantidade de material que era publicado na imprensa local, regional e
nacional. Muito do que aconteceu estava ali - as pessoas apenas ignoravam por
rejeitar a informação. Isso porque o regime nazista não ameaçava todos os
alemães, apenas grupos minoritários selecionados, incluindo, claro, os judeus.
A grande maioria da sociedade tinha pouco a temer. Já durante a II Guerra,
entre 1939 e 1945, as informações eram mais encobertas. Não obstante, um grande
número de pessoas estava envolvido diretamente com as ações do governo, e as
notícias chegavam a qualquer um que quisesse de fato saber o que acontecia por
baixo dos panos. Nesse período, os campos de concentração cresceram, ocupando
fábricas distantes dos centros urbanos e também no interior de algumas cidades,
tornando-se parte da vida cotidiana das pessoas e, portanto impossível de serem
ignorados.
Quanto os
alemães de fato sabiam sobre os campos de concentração e a Gestapo?
Eles sabiam muito. O regime
tinha orgulho de sua nova polícia e a celebrava anualmente no "Dia da
Polícia Alemã". Um bispo católico chegou a se gabar à congregação sobre
como um campo de concentração na região tinha dado à área um novo "sopro
de vida". Hitler apostou no apelo popular por meio de um regime baseado no
lema "lei e ordem". Não são poucos os que preferem a repressão em
nome da lei e da ordem em toda parte do mundo. E nós sabemos que esses recursos
podem ser perigosos para pessoas ingênuas e inocentes. Por isso, o terror
trouxe muito mais apoio ao nazismo do que tirou. O regime se vangloriava de sua
nova abordagem contra criminosos reincidentes, alcoólatras crônicos, criminosos
sexuais, desempregados e mendigos. Hitler prometeu "limpar as ruas",
e a maioria das pessoas aprovou a medida. Algumas acreditavam de fato no Hitler
e no nazismo. Outras queriam proteger seu país e lutar como nacionalistas e
patriotas. E provavelmente a maioria lutou para manter distantes os russos e os
comunistas, que eram amplamente temidos e odiados no país.
De que
forma a experiência de Weimar aumentou o apoio popular a Hitler?
Weimar produziu impasses políticos
e coalizões governamentais - e, depois de 1929, os regimes não se mostraram
fortes o suficiente para superar o desemprego. A ditadura de Hitler se livrou
dessas lutas entre partidos, das eleições intermináveis e da fraqueza do
governo. Inicialmente, o povo queria "dar a Hitler uma chance", como
se dizia naquela ocasião. De fato, foi uma tentação votar nele. Somente depois
se descobriu que ele tinha em mente ideias muito mais radicais do que qualquer
um poderia imaginar. Mas quando se percebeu o que estava por vir, já era tarde.
'Apoiando
Hitler: Consentimento e coerção na Alemanha nazista'
Como a
imprensa construía histórias consistentes sobre o regime?
A abordagem nazista para o
crime, a raça, a polícia, os campos de concentração não eram apenas casuais,
irracionais e esquizofrênicas. O regime, na verdade, apresentou medidas
racionais consistentes ao público na imprensa e no cinema. A censura - além de
deixar de fora judeus e desligar as vozes comunistas e socialistas - não foi
martelada a cada dia. As organizações nazistas, incluindo a SS e a Gestapo,
sabiam perfeitamente bem o que queriam dizer, mas Joseph Goebbels e seus
parceiros tinham em mente que os cidadãos perceberiam se todos os jornais
divulgassem notícias idênticas. Então, era dada aos editores uma ideia geral do
que o regime decidia que seria noticiado, e cada veículo seguia aquela ideia a
sua maneira. O jornal diário do governo, o Voelkischer Beobachter, era o
de maior circulação no país e suas histórias eram frequentemente repetidas por
outras publicações. A SS também tinha sua própria publicação, igualmente
popular. Para reforçar a boa imagem do sistema, Hitler e Goebbels ainda
favoreciam e tratavam com condescendência certos escritores, diretores de
cinema e outros artistas. Com isso, os filmes que se destacavam elevavam a raça
alemã e promoviam o racismo e outros valores nazistas.
Quais
"benefícios" o nazismo deu à Alemanha?
Até hoje, Hitler é lembrado por
ter garantido uma segurança tal que permitia que as mulheres andassem à noite
sem medo ou que os cidadãos deixassem suas bicicletas destravadas sem riscos.
Todas essas histórias são só parcialmente verdadeiras, mas ajudam a explicar
por que as pessoas apoiaram Hitler. Depois de Weimar, os alemães finalmente
podiam dar boas vindas a tempos melhores. Hitler lançou mão de programas de
ordem pública e investiu no rearmamento do país para a guerra. O que realmente
contou para muita gente foi que ele reduziu consideravelmente o desemprego e
trouxe de volta ao país seu orgulho - especialmente ao rasgar o odiado Tratado
de Versalhes (1919), acordo de paz que representou o fim da I Guerra Mundial e
foi considerado uma vergonha nacional, por impor uma série de restrições à
Alemanha.